Acordo de olhos fechados, inspiro como se fosse a primeira vez… Como um
recém-nascido. Um cheiro estranho invade os meus sentidos ao mesmo tempo
que os pulmões imploram por mais e mais ar num ruído continuo de
sofreguidão. Abro os olhos com dificuldade, algo não está bem, reconheço
onde estou, estou em casa, no meu quarto, na minha cama, mas… o tecto…
onde antes era branco, reina agora o cinzento, os cantos estão adornados
com enormes teias de aranha, as paredes estão salteadas com pequenas
falhas de tinta mostrando o reboco original contrastando com o bege que
ainda persiste. As cortinas pendem ainda nos varões mas agora são menos
de metade em tamanho, muito por culpa talvez das traças ou de qualquer
outro insecto. De repente o instinto obriga-me a olhar para o lado-
PATRÍCIA- Gritei. No lugar da minha mulher jazem agora dezenas de ossos
que ordeiramente formam um esqueleto!
Levanto-me num impulso. Uma dor indescritível invade-me o corpo
obrigando-me a apoiar na mesa de cabeceira. Meu Deus, o que se passa?
Ergo-me com esforço, dirijo-me à janela e tento-a abrir. O fecho está
calcinado e ferrugento. Com um pedaço de cortinado, limpo a espessa
camada de pó que se houvera acumulado no vidro. O cenário lá fora é
surreal! A rua está deserta, os carros embora perfeitamente alinhados e
estacionados estão dominados pela ferrugem, ervas enormes tomam conta do
alcatrão através de esporádicas fissuras.
Dirijo-me à porta da rua, e tal como a janela não cede à minha vontade!
Com o corpo dorido tento pontapear a porta, uma, duas, três vezes.
finalmente as dobradiças cedem e a porta cai com estrondo. Dou um passo
até lá fora, os pulmões agradecem. aquele ar é estranhamente límpido,
não me recordo de alguma vez ter sido agraciado por tal pureza. Debaixo
do alpendre olho para ambos os lados e reparo que os quintais e jardins
vizinhos estão descuidados e cheios de mato. Desço os degraus até à
calçada do passeio e viro à esquerda. Caminho agora pela rua, do outro
lado vejo um carro que, em contraste com os restantes, encontra-se
atravessado de portas abertas e com uma das rodas da frente sobre o
passeio. Antes de atravessar a rua, o instinto obriga-me a olhar para os
dois lados embora suspeite com alguma certeza que não virá nenhum carro
ou o que quer que seja. Aproximo-me da viatura e à excepção dos pneus
vazios e da ferrugem não vejo nada de anormal. O carro é um Renault
Mégane, a matricula acusa Junho de 2014, não percebo como pode estar
minado de ferrugem.
De repente lembro-me de um relógio de rua que existe em frente à minha
casa, e sem pensar duas vezes corro para lá desejando que por algum tipo
de magia ainda funcione e me possa dar alguma luz ao que raio se está a
passar. Ao chegar ao local reparo que os ramos de um dos chorões, agora
descuidados e com ramagens enormes, que se encontra ao lado do relógio
tapam o mostrador. Com algum esforço desvio os ramos e é com surpresa
que reparo que ainda funciona. O mostrador marca alternadamente “27ºC”
*pisc* “14h27m” *pisc* “12/04/2045” Aquela ultima informação
atravessou-me o cérebro como uma bala!
Ainda perplexo pelo cenário e completamente desorientado, ando o que me
parece apenas uns metros e encosto as costas ao muro de um edifício
cinzento já meio possuído pelas ervas, deixando-me cair lentamente com
os olhos vidrados no infinito. Passados alguns minutos dou comigo a
falar sozinho- 31 anos!! Não pode… ser! Não po…- De repente algo
interrompe a minha frase. – O que é isto? Um rugido?! – ROOAARR –
Fodaaaa-se, o que é esta merda?? Olho para todos os lados, e no fundo da
rua, talvez a uns 100 metros, vejo um leão enorme, descomunal e
completamente preto, com olhos vermelhos penetrando e violando a minha
alma!
Corro como nunca corri, entro na minha casa, mas não posso lá ficar pois
não tem porta! O que fazer? O que fazeeer? Lembro-me da espingardaria
do Sr. André que fica ao fundo da rua das traseiras da minha casa.
Dirijo-me à porta das traseiras e nem perco tempo a experimentar o
fecho, de uma vez só arrombo-a e corro para a loja. O pânico invade-me
ao mesmo tempo que oiço o leão no outro extremo da rua. Ao chegar à loja
sinto-me feliz por ver que a porta está aberta, entro, passo por trás
do balcão e escolho uma caçadeira, a tremer agarro numa caixa de
munições, deixo-a cair duas vezes até conseguir abri-la, com a mão
trémula cheia de cartuchos introduzo alguns na arma e outros caem no
chão! Ainda não tinha carregado totalmente a arma quando vejo o enorme
animal à porta. Não sou perito em felinos mas vejo o National Geographic
e outros documentários de vida animal suficientes para reconhecer um
leão normal, Algo que este certamente não é! Para além de ser totalmente
preto é ridiculamente grande, talvez duas vezes o tamanho de um cavalo
normal!
Se em alguma altura eu deixasse de controlar o esfíncter, seria agora o
momento; mas não! Estranhamente a calma invade-me! Ao mesmo tempo que
fixo aqueles enormes olhos vermelhos, aponto a caçadeira na sua
direcção, puxo a culatra, primo o gatilho e *click* nada, o bicho dá um
passo, entrando com cautela e lentamente no estabelecimento como se
soubesse que o único objecto que nos separa e que seguro com todas as
minhas forças lhe pode infligir o fim. Puxo novamente a culatra, o
cartucho sai dando lugar a outro, sinto o coração nas têmporas só de
pensar que todos os cartuchos podem estar húmidos por culpa dos anos
passados. O leão dá outro passo lenta e incisivamente; primo o gatilho,
*click* nada! É o fim! Atiro a inútil caçadeira para o focinho do animal
que a agarra com os dentes e a atira para o lado! Ia jurar que aqueles
grandes olhos vermelhos têm um cérebro inteligente por detrás!
Encosto-me à parede e finalmente a colossal besta flecte as patas
traseiras para disferir o salto dando-me apenas tempo de cruzar os
braços à frente do rosto e gritar- AAAAAHHHHH!!!- Sinto uma força na
coluna a impelir-me de baixo para cima e dou comigo sentado na cama!
Desorientado, passo as mãos pelo corpo encharcado em suor, assustando-me
logo de seguida com uma mão no meu braço, era Patrícia- Calma querido,
foi só um sonho! – Foi só um… O quê?- Balbucio no meio de algumas
lágrimas. – Queres que te vá buscar um copo de água?- A voz serena da
minha mulher em contraste com o sonho horrível que acabara de ter,
causa-me um desconforto estranho na garganta – Aceno com a cabeça – Não,
deixa, eu vou – Acendo o candeeiro e com os olhos escancarados
percorrendo todo o quarto. Está tudo normal, as paredes bege, o tecto
branco, os cortinados intactos! Suspiro aliviado e dirijo-me à cozinha,
encho o copo de água e decido bebericar por baixo do alpendre. Encostado
à ombreira da porta olho divertido para o outro lado da rua, lá está
ele, o relógio de rua: “17ºC”… *pisc* “03h07m”…*pisc* “16/07/2014” Ah…
ordem no universo, penso entre um sorriso de conforto, quebrado logo de
seguida com o som do estilhaçar do copo no chão! Saindo das sombras por
baixo do relógio de rua, em minha direcção caminha rápida e firmemente
um imponente leão negro, de olhos vermelhos cravados nos meus,
penetrando, violando a minha alma, e à velocidade de um salto tudo
acabou!
FIM
Por Blind Witch
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