sábado, 23 de janeiro de 2016

O Relógio de Rua

                            Conto recebido por email e escrito em português de Portugal


Acordo de olhos fechados, inspiro como se fosse a primeira vez… Como um recém-nascido. Um cheiro estranho invade os meus sentidos ao mesmo tempo que os pulmões imploram por mais e mais ar num ruído continuo de sofreguidão. Abro os olhos com dificuldade, algo não está bem, reconheço onde estou, estou em casa, no meu quarto, na minha cama, mas… o tecto… onde antes era branco, reina agora o cinzento, os cantos estão adornados com enormes teias de aranha, as paredes estão salteadas com pequenas falhas de tinta mostrando o reboco original contrastando com o bege que ainda persiste. As cortinas pendem ainda nos varões mas agora são menos de metade em tamanho, muito por culpa talvez das traças ou de qualquer outro insecto. De repente o instinto obriga-me a olhar para o lado- PATRÍCIA- Gritei. No lugar da minha mulher jazem agora dezenas de ossos que ordeiramente formam um esqueleto!
Levanto-me num impulso. Uma dor indescritível invade-me o corpo obrigando-me a apoiar na mesa de cabeceira. Meu Deus, o que se passa? Ergo-me com esforço, dirijo-me à janela e tento-a abrir. O fecho está calcinado e ferrugento. Com um pedaço de cortinado, limpo a espessa camada de pó que se houvera acumulado no vidro. O cenário lá fora é surreal! A rua está deserta, os carros embora perfeitamente alinhados e estacionados estão dominados pela ferrugem, ervas enormes tomam conta do alcatrão através de esporádicas fissuras.
Dirijo-me à porta da rua, e tal como a janela não cede à minha vontade! Com o corpo dorido tento pontapear a porta, uma, duas, três vezes. finalmente as dobradiças cedem e a porta cai com estrondo. Dou um passo até lá fora, os pulmões agradecem. aquele ar é estranhamente límpido, não me recordo de alguma vez ter sido agraciado por tal pureza. Debaixo do alpendre olho para ambos os lados e reparo que os quintais e jardins vizinhos estão descuidados e cheios de mato. Desço os degraus até à calçada do passeio e viro à esquerda. Caminho agora pela rua, do outro lado vejo um carro que, em contraste com os restantes, encontra-se atravessado de portas abertas e com uma das rodas da frente sobre o passeio. Antes de atravessar a rua, o instinto obriga-me a olhar para os dois lados embora suspeite com alguma certeza que não virá nenhum carro ou o que quer que seja. Aproximo-me da viatura e à excepção dos pneus vazios e da ferrugem não vejo nada de anormal. O carro é um Renault Mégane, a matricula acusa Junho de 2014, não percebo como pode estar minado de ferrugem.
De repente lembro-me de um relógio de rua que existe em frente à minha casa, e sem pensar duas vezes corro para lá desejando que por algum tipo de magia ainda funcione e me possa dar alguma luz ao que raio se está a passar. Ao chegar ao local reparo que os ramos de um dos chorões, agora descuidados e com ramagens enormes, que se encontra ao lado do relógio tapam o mostrador. Com algum esforço desvio os ramos e é com surpresa que reparo que ainda funciona. O mostrador marca alternadamente “27ºC” *pisc* “14h27m” *pisc* “12/04/2045” Aquela ultima informação atravessou-me o cérebro como uma bala!
Ainda perplexo pelo cenário e completamente desorientado, ando o que me parece apenas uns metros e encosto as costas ao muro de um edifício cinzento já meio possuído pelas ervas, deixando-me cair lentamente com os olhos vidrados no infinito. Passados alguns minutos dou comigo a falar sozinho- 31 anos!! Não pode… ser! Não po…- De repente algo interrompe a minha frase. – O que é isto? Um rugido?! – ROOAARR – Fodaaaa-se, o que é esta merda?? Olho para todos os lados, e no fundo da rua, talvez a uns 100 metros, vejo um leão enorme, descomunal e completamente preto, com olhos vermelhos penetrando e violando a minha alma!
Corro como nunca corri, entro na minha casa, mas não posso lá ficar pois não tem porta! O que fazer? O que fazeeer? Lembro-me da espingardaria do Sr. André que fica ao fundo da rua das traseiras da minha casa. Dirijo-me à porta das traseiras e nem perco tempo a experimentar o fecho, de uma vez só arrombo-a e corro para a loja. O pânico invade-me ao mesmo tempo que oiço o leão no outro extremo da rua. Ao chegar à loja sinto-me feliz por ver que a porta está aberta, entro, passo por trás do balcão e escolho uma caçadeira, a tremer agarro numa caixa de munições, deixo-a cair duas vezes até conseguir abri-la, com a mão trémula cheia de cartuchos introduzo alguns na arma e outros caem no chão! Ainda não tinha carregado totalmente a arma quando vejo o enorme animal à porta. Não sou perito em felinos mas vejo o National Geographic e outros documentários de vida animal suficientes para reconhecer um leão normal, Algo que este certamente não é! Para além de ser totalmente preto é ridiculamente grande, talvez duas vezes o tamanho de um cavalo normal!
Se em alguma altura eu deixasse de controlar o esfíncter, seria agora o momento; mas não! Estranhamente a calma invade-me! Ao mesmo tempo que fixo aqueles enormes olhos vermelhos, aponto a caçadeira na sua direcção, puxo a culatra, primo o gatilho e *click* nada, o bicho dá um passo, entrando com cautela e lentamente no estabelecimento como se soubesse que o único objecto que nos separa e que seguro com todas as minhas forças lhe pode infligir o fim. Puxo novamente a culatra, o cartucho sai dando lugar a outro, sinto o coração nas têmporas só de pensar que todos os cartuchos podem estar húmidos por culpa dos anos passados. O leão dá outro passo lenta e incisivamente; primo o gatilho, *click* nada! É o fim! Atiro a inútil caçadeira para o focinho do animal que a agarra com os dentes e a atira para o lado! Ia jurar que aqueles grandes olhos vermelhos têm um cérebro inteligente por detrás! Encosto-me à parede e finalmente a colossal besta flecte as patas traseiras para disferir o salto dando-me apenas tempo de cruzar os braços à frente do rosto e gritar- AAAAAHHHHH!!!- Sinto uma força na coluna a impelir-me de baixo para cima e dou comigo sentado na cama!
Desorientado, passo as mãos pelo corpo encharcado em suor, assustando-me logo de seguida com uma mão no meu braço, era Patrícia- Calma querido, foi só um sonho! – Foi só um… O quê?- Balbucio no meio de algumas lágrimas. – Queres que te vá buscar um copo de água?- A voz serena da minha mulher em contraste com o sonho horrível que acabara de ter, causa-me um desconforto estranho na garganta – Aceno com a cabeça – Não, deixa, eu vou – Acendo o candeeiro e com os olhos escancarados percorrendo todo o quarto. Está tudo normal, as paredes bege, o tecto branco, os cortinados intactos! Suspiro aliviado e dirijo-me à cozinha, encho o copo de água e decido bebericar por baixo do alpendre. Encostado à ombreira da porta olho divertido para o outro lado da rua, lá está ele, o relógio de rua: “17ºC”… *pisc* “03h07m”…*pisc* “16/07/2014” Ah… ordem no universo, penso entre um sorriso de conforto, quebrado logo de seguida com o som do estilhaçar do copo no chão! Saindo das sombras por baixo do relógio de rua, em minha direcção caminha rápida e firmemente um imponente leão negro, de olhos vermelhos cravados nos meus, penetrando, violando a minha alma, e à velocidade de um salto tudo acabou!


FIM

Por Blind Witch

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